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sábado, 9 de outubro de 2010

A arte de construir canoas - Uma tradição ameaçada

Por..:: Dimas Renato Pallu Marques - Revista Horizonte Geográfico - São Paulo,SP abril 2009.

A arte de construir canoas, símbolo dos pescadores do litoral de Ubatuba, corre risco de desaparecer.

Pesquisadores lançam projeto para conservá-la.
Seu Agrício, Baéco, seu Filhinho e Maximiliano. Guarde bem esses nomes, pois com eles está a mais apurada técnica de fabricação da tradicional canoa caiçara de Ubatuba. E esse conhecimento, parte fundamental da cultura do município do litoral norte paulista, corre risco de desaparecer. A proibição do corte de árvores de Mata Atlântica e a falta de interesse das novas gerações no aprendizado do ofício colocaram em risco essa tradição que acompanha o caiçara desde sua origem, logo após o contato do indígena de etnia tupi com o branco colonizador no século 16.

Jovem pinta canoa da família na praia do Bonete em Ilhabela. 
As canoas passam de geração para geração
Créditos da Foto..:: Catharina Apolinário, 2015.

Quem vai para Ubatuba pode observar com facilidade a arte das canoas "de um pau só". Os pesquisadores do projeto Com Quantas Memórias Se Faz Uma Canoa tiveram o trabalho de contar 422 em 37 praias da região. Apesar da aparente profusão, eles notaram o perigo. "O grande número de embarcações ainda encobre a carência de bons construtores", afirma a presidente executiva da ONG Instituto Costa Brasilis, Márcia Regina Denadai. A ONG é responsável pelo projeto, desenvolvido em conjunto com a Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba (Fundart) e o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO/USP).

O tom pessimista do discurso da pesquisadora é reflexo do sentimento desses mestres canoeiros. "Meu ofício vai acabar e, sem as canoas, acaba o caiçara", afirma Manoel Néri Barbosa, o Baéco, 50 anos e mais de 400 canoas construídas. Ele é herdeiro do conhecimento de seu pai, Agrício Néri Barbosa, que, com seus 87 anos, não frequenta mais o galpão onde funciona a oficina da família, no sertão da praia de Ubatumirim. Baéco conta que, com 12 anos, já usava as ferramentas para entalhar pequenas canoas de 30 centímetros para brincar. "Fiz minha primeira canoa de verdade quando tinha uns 15 anos", recorda.

Tanto os mestres quanto os pesquisadores acreditam que Baéco, provavelmente, faz parte da última grande leva de construtores de canoa do município. Além dos quatro apontados no início desta reportagem como referência no ofício, 40 caiçaras de Ubatuba foram identificados como responsáveis por fazer esse tipo de embarcação. "O problema está na falta de interesse dos mais jovens. Construir canoas para pesca é um trabalho árduo e que é desestimulado pela alternativa do barco de alumínio", constata Márcia Denadai. Baéco e Benedito Evaristo de Gonçalves, o seu Filhinho, lamentam não ter aprendizes, nem entre seus filhos. "Meu filho de 26 anos não se envolveu. Meus quatro irmãos me ajudam, mas só no primeiro corte das árvores, pois o resto é comigo", conta Baéco.

A escolha da árvore e o arraso
A construção de uma canoa começa pela escolha da árvore que fornecerá a madeira. "O cedro é a melhor, mas é a mais difícil de achar hoje em dia", afirma Baéco. O guapuruvu, o ingá-amarelo e a timbuíba também são bastante utilizados pelos construtores de Ubatuba - 86% das embarcações localizadas pelos pesquisadores são feitas com essas quatro espécies porque oferecem uma boa relação entre resistência e flutuabilidade. "Madeira muito leve flutua bem, mas dura pouco. As mais pesadas duram mais, mas dão mais trabalho para quem rema", explica Baéco.

Na segunda metade do século passado, principalmente a partir dos anos 80, a implantação de unidades de conservação limitou a extração dessas árvores, todas nativas da Mata Atlântica. "Hoje eu só trabalho com madeira que já está caída na mata. Quando a gente acha alguma árvore boa para fazer canoa, pede autorização para o pessoal do parque (Parque Estadual da Serra do Mar) e, se conseguir, tira da floresta. Não importa a distância. Conseguir autorização para cortar madeira viva hoje é praticamente impossível", explica seu Filhinho, 66 anos, 40 deles dedicados à construção de mais de 200 canoas.

Encontrada a madeira, inicia-se o arraso. E o machado passa a ser a extensão do braço do canoeiro que, com ele, começa a cavoucar o tronco. Aos poucos, aquela árvore caída passa a ganhar forma de embarcação. É como se o espírito do caiçara agisse sobre o enorme pedaço de madeira a procura da canoa ali escondida. Nos olhos do homem que sua e faz força para desferir cada golpe, está a satisfação de criar um dos maiores símbolos de sua cultura. Essa fase dura até cinco dias e ocorre totalmente dentro da floresta.

A puxada e os "causos"
A retirada do tronco escavado, agora mais leve, para o local onde será esculpido é um evento social que envolve bastante gente", explica o biólogo e pesquisador do Instituo Oceanográfico da USP, Alexander Turra. Os "camaradas" (vizinhos e amigos) são chamados para amarrar o tronco com cordas e arrastá-lo pela mata - daí o nome "puxada" - até a rodovia (onde algum veículo aguarda) ou direto até o galpão onde a canoa será esculpida. O evento é uma espécie de mutirão em que até 20 homens fazem força e relembram os fatos ocorridos em outras "puxadas", cantam e contam "causos" e anedotas. As mulheres ajudam, levando bebida e preparando comida. Cada parada para as refeições pode se transformar em confraternizações com dezenas de pessoas.

Tradicionalmente, os construtores de canoas utilizam enxós e plainas (instrumentos de mão com lâminas destinadas a tirar lascas de madeira) para dar o acabamento nas embarcações. Mas ferramentas modernas também já são utilizadas. "Cada vez mais eu uso a motosserra, a entalhadeira e a lixadeira elétricas para me ajudar em toda a feitura. Uma canoa que demorava um mês para ficar pronta, hoje eu preciso de, no máximo, duas semanas. Depende do tamanho", explica Baéco.

A sobreproa adaptada ao mar
Para quem não conhece, aparentemente todas as canoas são iguais. Mas o caiçara sabe distinguir a origem da embarcação por meio de algumas características de sua construção. As canoas de Ubatuba em geral têm como peculiaridades a proa (parte da frente) bastante erguida e a existência da sobreproa - uma lâmina de madeira pregada na ponta da proa para ajudar a romper as ondas no momento de entrar na água e para facilitar a navegação. "É uma característica nossa, adaptada ao tipo de mar, já que o pescador enfrenta as ondas de frente quando entra na água", afirma Baéco. Os pesquisadores constataram que 75% das canoas do município têm sobreproa.

A pesquisa sobre as canoas de Ubatuba, financiada pela Petrobras via Lei de Incentivo à Cultura do governo federal, deve virar livro com o mesmo nome do projeto, a ser lançado em maio e distribuído nas bibliotecas e nas escolas públicas. "É uma forma de resgatar e registrar a memória desse grupo", afirma Turra. Quem sabe também não será uma forma de valorizar a profissão para que seja mantida por outras gerações?

Tradição local levou a quatro tipos de embarcações
PESQUEIRA (ou apenas canoa): Uso para pesca costeira de, no máximo, dois dias. Tamanho: 4 a 6 metros de comprimento, 70 centímetros de largura. Capacidade: três pessoas (usa remo e pode usar motor)

BATELÃO: Para pesca costeira de até quatro dias e navegação entre bairros distantes. Tamanh: 6 a 9 metros de comprimento, 1 metro de largura. Capacidade: três pessoas (usa remo e raramente motor)

VOGA (não existe mais na região): Navegação marítima entre municípios. Tamanho: acima dos 20 metros de comprimento, até 2,20 metros de largura. Capacidade: 15 pessoas entre tripulantes e passageiros (usa remo e vela)

REGATA: Competição e pesca da manjuba. Tamanho: varia de acordo com a categoria da competição (para um, dois ou três remadores). Usa remo

Quem são os caiçaras?
Os caiçaras não são um grupo definido por etnia, mas pela identificação em torno de um saber comum. "Eles compartilham um modo de vida ligado ao mar e à pequena agricultura, são pescadores-lavradores", explica a cientista social Wanda Maldonado.

Geograficamente, habitam a faixa litorânea do norte do Paraná até o sul do Estado do Rio de Janeiro. Do final do ciclo do ouro, no século 18, até meados do século 20, os caiçaras permaneceram isolados. E para sobreviver foi necessário conquistar autonomia. A pesca e a agricultura de subsistência garantem o alimento dos caiçaras. "É a prática de fazer canoa que permite a ida para o mar em busca do peixe", conta seu Filhinho, que se orgulha de ser um caiçara autêntico.

Wanda, que pesquisou sobre a construção da canoa em Ilhabela, acredita que a pressão exercida por outras culturas sobre os caiçaras gera dois fenômenos aparentemente divergentes. O primeiro é a transformação resultante do contato (como o que está acontecendo com a substituição de canoas por barcos de alumínio) e o outro é o surgimento de um sentimento de identidade. "O convívio com o diferente motiva também o resgate de elementos do modo de vida caiçara", afirma.

Para o navegador Amyr Klink, o governo deveria promover uma política de valorização da cultura tradicional.

Para cada navegação, uma canoa
Se a canoa de Ubatuba tem como peculiaridades a proa mais empinada que a sobreproa, as embarcações de outros municípios caiçaras também têm características próprias. "Já trabalhei em Parati e as canoas de lá têm a proa mais larga, feita para espirrar a água para os lados. Elas são mais lentas que as de Ubatuba", conta Baéco.

Ele diz que as embarcações de São Sebastião, por sua vez, são as mais estreitas que já conheceu. "O lado do canal tem águas calmas, por isso elas não precisam ser tão estáveis e largas", conta. A cientista social Wanda Maldonado, autora de uma dissertação de mestrado sobre a canoa de Ilhabela, destaca a proa reforçada (bem espessa para que o contato com as pedras da costa da ilha não danifique a embarcação) como uma das suas principais peculiaridades. "Também conheci as canoas de Cananéia, que são bastante estreitas porque são feitas para navegar nas águas calmas dos manguezais", salienta.

Algumas características comuns das canoas caiçaras foram incorporadas por Amyr Klink na construção do veleiro Paratii 2. "Eu consigo encalhar uma embarcação de 100 toneladas na praia como se fosse uma canoa. Infelizmente no Brasil, nossa riqueza em técnicas de construção naval não é valorizada", afirma.

Olhos
A dificuldade em conseguir madeira na floresta e a falta de interesse dos jovens em aprender a construir canoas têm deixado os mestres pessimistas sobre o futuro do ofício

A retirada do tronco da mata, conhecida como "puxada", pode envolver até 20 homens que cantam e contam "causos" e anedotas para aliviar o trabalho pesado

O tipo de mar de cada região influenciou os construtores de canoas a adaptarem as embarcações.


(papo de biologia)

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